28 julho 2010

O que diz Molero

Anos atrás eu vi essa peça extremamente longa com cerca de quatro horas de duração, poucos atores para interpretar dezenas de personagens e um cenário único para retratar vários e diferentes locais.

E foram excelentes quatro horas, os atores perfeitos, eu realmente vi dezenas de personagens diferentes, as vezes mudando apenas a posição de uma gravata criava-se a magia em cena e mudava completamente o personagem.

O texto de "O que diz Molero" é incrível. a ideia de princípio simples: é a história de Austin e Mister Deluxe que lêem e discutem trechos de um relatório escrito por Molero a respeito de alguém citado apenas como Rapaz, mas que se abre em vários personagens que passaram a vida do Rapaz.

O livro foi escrito por Dinis Machado, e a peça no Brasil foi belamente adaptado para o teatro por Aderbal Freire-Filho.




Trecho inicial

“Teve uma infância estranha” - disse Austin.

“Em última análise, todas as infâncias o são” disse Mister Deluxe.

“Molero diz - disse Austin - que a infância do rapaz foi particularmente estranha, condicionada por questões de ambiente que fizeram dele, simultaneamente, ator e espectador do seu próprio crescimento, lá dentro e um pouco solto, preso ao que o rodeava e desviado, como se um elástico o afastasse do corpo que trasnportava e, muitas vezes, o projetasse brutalmente contra a realidade desse mesmo corpo, e havia então esse cachoar violento do que era e a espuma do que poderia ser, a asa tenra batendo “a chuva.”

“ O quê?” - perguntou Mister Deluxe.

“É curioso pensar – disse Austin, passando por cima da pergunta direta – que o rapaz tirava Burriés do nariz quando era pequeno, mas não os comia logo.”

“ Hã? ” - fez Mister Deluxe.

“ Não os comia logo – acentuou Austin -, colava-os na parede para os comer no dia seguinte. -Houve uma pausa_ Gostava deles secos – explicou”

“É óbivio – disse Mister Deluxe -, não estou a falar dos burriés, estou a falar das idiossincrasias de Molero – Debruçou-se sobre a secretária e virou uma folha do calendário de mesa. – Ainda estávamos no dia de ontem – dise ele.

“Temos várias pistas – disse Austin -, um tabique, uma casca de banana, uma sina, um escarrador, uma tela de Miró, uma passagem do relatório que esclarecem o problema, passagem aparentemente insignificante, mas que talvez sejam efetivamente outra coisa, como o fato de o pai jogar bowling com garrafas, quando lá no bairro ainda ninguém sabia o que era o bowling, isso depois de beber o conteúdo das garrafas, eram garrafas de vinho, cerveja aguardente eu mais que viesse, eles ficava bêbado e depois jogava bowling e partia as garrafas com uma grande bola de prata de chocolates, e o rapaz ficou sempre cm o som nos ouvidos, o som de garrafas partidas enchendo a noite, um perpétuo estilhaçar de nervos.”

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